Nosso café da manhã foi tomado em modo Zumbi e ignorar os amigos durante o desjejum foi inexplicavelmente divertido. Tivemos uma boa noite de sono, embora a forte chuva nos tenha causado alguma preocupação. As sequelas do exaustivo dia anterior eram bastante evidentes em nossos decadentes corpos que se arrastavam pelas dependências do hotel. Enquanto as coisas lentamente voltavam a fazer sentido, seguimos para os nossos favelados quartos e ajeitamos a baderna generalizada em total silêncio. A prestativa camareira lavou nossas catingosas roupas na noite anterior e acabamos improvisando um bizarro varal por cima de nossas camas, dando um aspecto miserável aos nossos aposentos. Como temos várias peças de roupas iguais, descobrir o que era de quem - nos tomou algum tempo. Iniciamos o quarto dia da nossa ilustre jornada por volta das 9h20, inquietos com os primeiros pingos que começavam a cair. O início nos sempre malditos paralelepípedos nos fez lembrar muito precocemente de o quanto nossos forévis já estavam maltratados. Felizmente o calçamento da rua durou muito pouco, tanto quanto a chuva, que ameaçou e nunca caiu. Seguimos um pouco mais aliviados, pelo menos até começarmos a subir.
DIA 4) DE APIÚNA À VIDAL RAMOS – PASSANDO POR PRESIDENTE NEREU APÓS FUGIR DA ZONA FANTASMA...
O dia estava perfeito para se pedalar, já que não chovia e tampouco fazia sol. A superbacana estradinha de chão desarmou de cara o nosso mau humor decorrente das insuficientes horas de sono. Rapidamente estávamos rindo e falando aos montes - inspirados pela notável região, pedalando sempre lado a lado com o simpático e amarelado rio.
Serpenteamos a montanha do além até chegar perto do céu para só então começarmos a descer. Mas até lá, foi um longo e incessante martírio. Galgamos morro acima por cerca de infindáveis 30 km com os pesados alforjes fazendo parecer muito mais do que isso.
Muito depois, já beirando o desânimo, houve uma grande descida que fez reaparecer a alegria de pedalar. Energia renovada apenas o suficiente para novamente subir o equivalente ao que foi descido. Entorpecidos com o desgaste físico, continuamos nossa singular viagem curiosamente de forma bastante serena. O relevo se estabilizou até antes do que imaginávamos e o fim aparente das grandes subidas modificou o panorama do dia. O local era bonito demais, o que fez compensar o cansaço excessivo daquele momento.
Estranhamente a estrada foi perdendo aos poucos seus contornos naturais e ganhando cada vez mais aspecto de trilha. A interessante sensação de aflição foi de alguma forma até agradável, já que mascarava um pouco todo o desgaste que sentíamos naquele instante. Com a piora daquilo que o GPS insistia em categorizar como estrada, nossa agonia foi gradativamente aumentando. Começamos a descer uma encosta enlameada ao extremo ao ponto das bicicletas travarem com o barro que se acumulava entre as rodas. Naquele momento nada funcionava direito. Câmbios, freios, correntes – era tudo uma maçaroca só!, e o fato de ainda conseguirmos nos manter equilibrados em cima das maltratadas bikes - já era uma grande conquista. O dramático momento teve seu apogeu um pouco mais abaixo, quando nos deparamos com uma sinistra cerca que fechava a pseudoestrada. Nesse momento o desespero rondou nossos confusos pensamentos. Retornar uma eternidade morro acima com a estrada naquela deplorável situação estava fora de qualquer possibilidade. Ignoramos as possíveis consequências, pulamos a horrenda cerca e seguimos nossa sina bastante inseguros. Não demorou muito para cruzarmos um sombrio vilarejo, aparentemente habitado por pessoas que mexem com as artes das trevas. Surpresos com a nossa inconveniente presença, da porta de suas cabanas os soturnos seres nos encaravam, desaprovando explicitamente a nossa existência. Nossas vísceras se contorceram e saímos dali o mais rápido que podíamos, cuspindo barro para tudo quanto é lado e sem nunca olhar para trás.
Próximos do fim da tarde, fizemos a nossa primeira parada para comer alguma coisa. Menção honrosa para os celestiais Pés de Goiaba que salvaram o dia. Repomos nosso estoque de água numa bela grutinha que encontramos no caminho. Após passado o susto da vila Hobbit do mal (situada numa intrigante Zona Fantasma), dávamos boas risadas do estranho momento.
Chegamos à pequena Predidente Nereu (possui pouco mais de dois mil habitantes) após as 19h30 sem ao menos ter almoçado. Paramos numa lanchonete muita bacana onde rapidamente cada um comeu a porcaria que achou melhor + laranjinha Água da Serra, que naquele momento foi a melhor coisa do dia. Marcelo teve um princípio de surto que cada um ignorou a sua maneira. Estávamos exaustos e extremamente atrasados, pois ainda havia mais 20 km a serem pedalados e pelo que sabíamos... morro acima! Seguimos muito preocupados e também chateados com o mal estar criado pelo estressado amigo. Não havia o que fazer senão abaixar a cabeça e seguir caminho. A fim de evitar contratempos, ligamos e avisamos o pessoal do hotel que chegaríamos bastante atrasados. Noite escura e gelada. Subimos muito de início e em algum momento beiramos o desespero. As grandes descidas parecem aparecer sempre nos momentos que mais precisamos e desta vez não foi diferente. Um interminável e emocionante declive que adiantou muito o nosso caminho. Na inclinada e irregular estradinha, ofuscados pela densa escuridão da região e ainda descendo numa velocidade consideravelmente imprudente - não ter caído e se espatifado no arenoso chão, foi um feliz acaso.
A imponente fábrica de cimento da Votorantim pode ser avistada de muito longe - o que nos deixou confusos, já que há alguns poucos anos nada disso existia. Errar o caminho e parar em outra cidade é um pesadelo sempre recorrente em nossas viagens. Encaramos uma última subida (esta já asfaltada) até finalmente rodarmos em Vidal Ramos. Comemos de forma absurda no primeiro lugar que encontramos, saindo com a agradável sensação de ter degustado a melhor janta da história! Fernando inclusive tirou licença de suas convicções veganas e se esbaldou num belo bife a parmegiana, deixando todos muito orgulhosos do tamanho estrago. Mas o dia ainda não havia terminado. Ao chegar no hotel, nos deparamos com as portas fechadas e por telefone descobrimos que as nossas reservas estavam erradas e fomos transferidos para o outro hotel da cidade - que há pouco tempo também não existia. A nova fábrica da Votorantim mexeu com toda a estrutura da cidade e a população parece estar um pouco perdida, ainda se adaptando a nova realidade. Teríamos que voltar um considerável trecho e ainda por cima – morro acima. Não havia a mínima condição de isso acontecer, pois não tínhamos mais forças. Muito compreensivo, o proprietário do hotel veio nos buscar numa pequena caminhonete. Na caçamba, agarrados as bicicletas e no auge de nossa duvidosa lucidez, podemos afirmar que foram os cinco minutos que mais passamos frio em todas as nossas vidas (com o perdão do exagero, naturalmente). O novo hotel era simplesmente extraordinário. Para compensar o equívoco deles, nos alojaram em quartos individuais e ainda cobraram o valor da diária equivalente ao se tivéssemos ficado no outro hotel mixuruca. Incrédulos, botamos os pés nos caprichados quartos somente após a meia-noite, emocionados em avistar uma cama tão macia. Para o dia seguinte, nada de combinar horário. Cada um deveria dormir o que fosse preciso e assim ficou acertado.
Quarta etapa concluída, absurdamente cansados para tecer qualquer tipo de comentário...
Em setembro devo fazer esse mesmo trecho que vcs, ou seja de Apiuna ate Vidal Ramos. Por acaso vcs tem o track GPS desse pedal? Agradeço.
Curti um monte esse pico. Valeu galera!
To aqui acompanhando vcs.
Beker Abços
Partes engraçadas do relato de vcs:
1º seguimos para os nossos favelados quartos kkkk
2ºum bizarro varal por cima de nossas camas, dando um aspecto miserável aos nossos aposentos. Como temos várias peças de roupas iguais, descobrir o que era de quem (imagina o xeiro de c.) kkkkkkkk.
Bom pedal galera, e to aqui CURTINDO c vcs a ADVENTURE BIKER.
Muito show, parabéns!
Até o momento essa foi a etapa mais divertida - ao menos para os leitores.
Estão com sorte por não serem enfeitiçados pelos moradores da zona fantasma, uma pena que não fotografaram os sinistros moradores em suas horripilantes cabanas.
Achei muito legal a fábrica da Votorantin, e fiquei feliz por saber que ficaram em um bom hotel com direito a todo o descanso se fizesse necessário!
Muito bacana mesmo! o//
Abraços!!
As fotos ficaram ótimas parabéns, um grande abraço a todos, há! Para o extressadinho também ok .
Como sempre, só ótimas fotos e relatos divertidos!
Muito obrigado por sempre lembrar de seu amigo aqui, que mesmo distante envia-lhes um voto de apoio, ao mesmo tempo de felicidade por voces deleitarem com sempre belas imagens de nosso belissimo país.
É isso ae pessoal, sigam sempre assim.
Um grande abraço de mais um de tantos admiradores de voces.
Sucesso e que Deus sempre os proteja.
Odair "APSE BIKE"
Mas... cadê as fotos do tal vilarejo? Terão de voltar lá pra clicar! Todo mundo curioso...
De novo, texto impagável. Podia rolar uns videozinhos, hein? com mau-humor e tudo! Tá valendo!
Grande Abraço!
Boas pedaladas!
Um dos meus sonhos é fazer o q vcs fazem.
Parabéns......
E Rodrigo, seu texto é impagável! Aonde arranja disposição pra tanta criatividade? Comecei agora e voltei todos os dias, desde o início. Português exato, comentários e humor de primeira!
Um grande abraço a todos vocês, e boa sorte!
fiquei procurando uma chapa do "sombrio vilarejo"! hehehe...fiquei curioso.
abraços aos desbravadores!
Elton Xamã - Pantanal Sul-Matogrossense
Abraços,
Dézinho