Conhecendo melhor nossa “Santa & Bela Catarina” – a 5ª viagem... 1 de 7: muito pior do que imaginávamos
Escrito por: Rodrigo Martins em 27/01/2014

É fato que essa viagem só aconteceu por que somos imunes aos bons conselhos. Uma chuva copiosa se instalou na abóbada celeste catarinense dias antes da nossa saída e a cada torrencial noticiário, nossa apreensão só aumentava. Várias cidades foram alagadas e algumas estradas inclusive fechadas. Sincronizar as férias da plebe pedalante é tão complicado que desistir era algo praticamente descartado. Apesar da atmosfera pessimista, entre um telefonema e outro ficou decidido que manteríamos o cronograma e que logo mais no acme da madrugada, estaríamos na estrada. Entre acordar, ficar deprimido por ter acordado, ajeitar as tralhas, amarrar as bicicletas e esperar o Fernando (que perdeu o horário novamente), foi-se um bocado de tempo. Somente próximo das seis badaladas é que nossa intrépida caravana tomou o seu rumo em direção ao planalto catarinense. Hipnotizados pelo sonífero silêncio de quem ainda desejava estar no sono etéreo, despertamos apenas quando o Roberto tascou uma coletânea dançante deveras pederasta lá do tempo que ele ainda era jovem, causando boas risadas no agora animado grupo. Ainda não eram nove horas quando chegamos completamente entrevados pela demorada viagem até a longínqua Lages.

DIA 1) DE LAGES À CAPÃO ALTO – PASSANDO POR LUGAR NENHUM...

Lages é o maior município em área de Santa Catarina e possui mais de 150 mil cabeças humanas. Fica distante 223 km da capital e faz frio pra caramba em qualquer época do ano. De resto, não deu para descobrir muita coisa, pois assim que estacionamos o carro e arrumamos devidamente nossas parafernálias - seguimos caminho estrada afora. Paramos brevemente no primeiro supermercado que avistamos e fizemos um saudável lanche (pastel com Pepsi: bom e barato). O sol intercalava com algumas nuvens horrorosas, nos deixando confusos e por ora apreensivos. O primeiro pneu furou (curiosamente o único) já nos primeiros minutos de pedal, inquietando de início o já intrigado grupo. Um olho na estrada e outro no céu - e assim seguimos sempre.

Estreando o novo fardamento, rodamos rapidamente por um trecho da periferia lageana e sem demora destratamos o asfalto para adentrar numa infindável estrada vermelha. Pela mesorregião serrana ainda não havíamos pedalado e nos deparamos com uma paisagem diferente ao que estamos acostumados. Os tons mais escuros da vegetação logo chamaram a atenção e o ar rarefeito e intocado de fumaça nos deram a sensação de estar pedalando num mundo diferente. A estrada ruim, infestada de pedras e buracos exigiu de nós um pouco mais do que gostaríamos. Avistamos pouquíssimas casas e todas muito espaçadas uma das outras, sem vestígio algum de seres terrestres.

Roberto era o mais empolgado e falava aos montes. A ladainha da hora era os tais novos pneus que ele havia comprado. Segundo os seus divertidos delírios, com os tais pneumáticos mágicos, a tendência era ir até o infinito e além sem sequer precisar pedalar (pasmem!). A suspeita sempre existiu e a certeza de que o nosso querido comparsa de pedal faz uso de substâncias psicoativas durante essas longas viagens veio quando ele saiu com a seguinte pérola: - Cara, esse relaxante muscular tira a dor muscular do músculo!

O tempo firmou um pouco e a nossa preocupação passou a ser diferente. Sem comida e sem água já a mais de um par de horas, nosso rendimento começou a cair e começamos a perceber o quão atrasados estávamos. Dentro do nosso planejamento, esse primeiro dia era para ser o mais tranqüilo e quando percebemos que não seria tão simples vencer essa etapa, a diversão simplesmente deixou de existir. A aparência exaurida do Fernando preocupava - aumentando consideravelmente a nossa aflição.

Fernando beirava a exaustão e foi cada vez mais ficando para trás. As raras residências que encontramos pelo caminho pareciam estar abandonadas há algum tempo. Ao todo ficamos mais de oito horas sem comer e pelo menos a metade desse tempo sem beber água. Esbaforidos e irritados, seguimos nossa sina sem ânimo sequer para reclamar de qualquer coisa. No máximo uma testa enrugada com o sofrido momento. Nosso alento só veio com a primeira comunidadezinha que encontramos com pouco mais de meia-dúzia de casebres, já perto do final da tarde. Sofremos de porta em porta até encontrar uma nobre alma que acalmasse o nosso desespero com um pouco de água. Nessa altura do pedal já com o sol perto de se pôr, enxergamos uma realidade que não estávamos preparados. Nosso amigo Fernando não tinha mais condições de prosseguir pedalando e precisávamos nos movimentar em busca de um guincho amigo. Já estava difícil conseguir água, imagina então a extravagância de um reboque naquela inóspita localidade.

Entre amigáveis prosas, um vizinho indicou outro, até que num vilarejo mais além encontramos um pequeno sítio que segundo os moradores locais havia um bom moço que fazia frete com um pequeno caminhão. Enquanto Fernando procurava manter-se vivo e o Roberto lhe fazia companhia, Rodrigo e Marcelo cruzaram a longa entrada da propriedade na esperança de encontrar alguém que nos socorresse. Na escuridão só víamos o brilho dos olhos de um guapeca desvairado que não parava de latir. Batíamos palmas e chamávamos por alguém, qualquer bom ser disposto a ouvir as nossas súplicas. Demorou um pouco até que uma grande porta se abriu, causando calafrios com o estridente e irritante ruído. De longe avistamos uma enorme silhueta de um ente saindo apoiado em um longo e imponente cajado. Engolimos seco e instintivamente demos dois passos para trás. Quase gaguejando, respeitosamente perguntamos se ele era o tal “moço” que fazia frete. Quando uma luz acendeu e o momento bruxuleante se desfez, outro passo para traz foi dado e a voz do altivo senhor ganhou forma.  - Depende, meus filhos. Falou o ser, após dar um belo piparote na guimba de seu fedegoso cigarro de palha. O até simpático senhor parecia uma versão caipira do poderoso Mago Gandalf, embora um pouco mais assustador. Relutou em aceitar o nosso pedido e talvez tenha sido seduzido apenas pelo nosso tom de quase desespero. A caminhonete era na verdade um girico todo entalhado em madeira, feito provavelmente com sua própria Ginsu 2000. O teto era feito de latas de azeite e sequer havia portas. Fazia muito frio e batíamos o queixo em sincronia com o som do barulhento motor. Mais a vontade, o agora eloquente feiticeiro da floresta nos levou no seu simpático e inusitado caminhão por pelo menos dez quilômetros, sendo boa parte morro acima, não deixando espaço para lamentações. Não havia como pedalar isso tudo naquele estado deplorável que nos encontrávamos. Ao chegar na BR, ainda pedalamos por mais seis quilômetros – alimentados apenas pela motivação de chegar o quanto antes no hotel.

Chegamos um pouco após as 20h, exaustos e com a barriga contorcendo de tanta fome. O aspecto da janta não era bom, mas asseguro que ninguém reclamou. Arroz, feijão, macarrão, alguma coisa parecida com abóbora, bolinho de arroz, salada de tomate de aspecto duvidoso e carne assada boiando fartamente numa banha de dois séculos de uso. Havia também algumas leguminosas não identificadas que sequer pareciam ter sido cultivadas aqui na terra. Enfim, fome não passamos e a Coca-Cola gelada e a rapadura de sobremesa se encarregaram de tirar qualquer sensação de gosto ruim da boca. Julgo Impossível um hotel ser mais trash do que aquele fantasmagórico local. Nosso quarto estava boa parte alagado e com uma porta voltada para o além que sequer fechava. Durante o meu banho, o chuveiro queimou e de forma muito desagradável, tive que terminar com a água gelada. Roberto, felizardo, levou um choque no seu e em nenhum dos quartos as televisões funcionavam. Ao me deitar, a cama quebrou. Por falta de motivação para qualquer coisa em que eu precisasse me mexer, pensei seriamente em ficar envergado por ali mesmo, mas logo o pescoço começou a doer e acabei me obrigando a trocar de leito. As cobertas exalavam um odor enjoativo de Elma Chips e nessa altura da brincadeira já achávamos graça de tudo isso. Ficamos isolados do mundo, pois não havia telefone. Em conversa com o simpático proprietário do hotel, descobrimos que na inóspita região não havia linhas telefônicas, muito menos sinal de celular. Estranhamente existia acesso a internet, via rádio. Tão lento que me fez sentir saudade da época em que as conexões eram discadas. Susto levamos quando ele nos disse que a previsão para o dia seguinte era de neve para toda a região. Procuramos não pensar muito nisso e fomos dormir encasquetados com a possibilidade. Será?

Primeira etapa concluída num martírio do cão. Se o primeiro dia que era para ser fácil foi assim, imagina o resto... pensamos transtornados.

Comentários
Seg, 03 de fevereiro de 2014
Por: joaozinhomenininho
Muito legal a postagem, fotos, relato... o layout e desenho do site é muito bom... as cores facilitam a leitura rápida...

Cicloabraços
Joaozinho
Santo André-SP
Sáb, 01 de fevereiro de 2014
Por: Elton Xamã
hola, chamigos!
As fotos ficaram muito bonitas nesse tempo nublado!
Bela pedalada, parabéns
Abraços,
Elton Xamã
Pantanal SUL-Matogrossense
Sex, 31 de janeiro de 2014
Por: Waldson - Antigão cicloturista.
Show de relato e fotos como sempre!
Conheço Lages e sei bem como é o frio lá. Mas é uma cidade bela e acolhedora.

Ri muito da situação do, digamos, hotel. Vocês deveriam ser indenizados por terem dormido lá, hehehe!
Mas, e o Fernando ficou bem?

Parabéns pela garra e disposição desse aguerrido primeiro dia. Aguardamos ansiosos pelos demais dias.

Grande abraço do Antigão!
Qua, 29 de janeiro de 2014
Por: adao fernando
legal amigos faço parte de um grupo aqui em porto alegre que sabe um vou pedalar com vcs abraços.
Qua, 29 de janeiro de 2014
Por: Felipe
Massa, vou acompanhar os relatos.

http://goingsouthbound.wordpress.com
Qua, 29 de janeiro de 2014
Por: IvoLeo - Ivo Leonardo Schmitz
Show de relato, esperando próximos.
Qua, 29 de janeiro de 2014
Por: Heil
Olá: estão conhecendo um pouco das pedras lageanas que são bem maiores que as nossas aqui do litoral. Fizemos um roteiro por Capão Alto em 2011, qdo. fomos para Erechim( http://odois.org/?111005&4). Não sei qual o sentido que irão, mas se chegarem em Celso Ramos, tem uma travessia bem legal por uma pinguela bem grande, no Rio Canoas, que vai no sentido BR-470, entre Campos Novos e Barracão-RS.

Bons pedais. Abc. Heil
Qua, 29 de janeiro de 2014
Por: Vanderléia
Muito bom! As fotos ficaram show! E o relato, como diz o Eleonesio, foi de rachar o bico...
Qua, 29 de janeiro de 2014
Por: MBL CONFECÇÕES
Parabéns galera pelo relato e imagens do pedal
Qua, 29 de janeiro de 2014
Por: Eleonesio Diomar Leitzke
p.s.: agora até temos um patrocinador em comum, só falta o pedal em conjunto mesmo.
Qua, 29 de janeiro de 2014
Por: Eleonesio Diomar
Meus parabéns pelo novamente divertidíssimo relato(um dia aprendo a escrever assim tb. Me senti vendo os comentários do Roberto(coitado) sobre os pneus e sobre as substâncias psicoativas e a desolação do Fernando....rsrsrs, agora a descrição do Gandolf e sua caminhonete feita por Ginzu e o sofrido hotel, foi de rachar o bico. Parabéns e que venha o relato do próximo dia.