Conhecendo melhor nossa “Santa & Bela Catarina” – a 5ª viagem... 6 do que era para ser 7: a desolação final dos quatro encharcados pseudociclistas
Escrito por: Rodrigo Martins em 04/04/2014

A ausência de seres errantes com complexo de ursos ronronantes para quebrar o adorável silêncio da agradável madrugada, fez dessa uma noite memorável. Dormia bem demais e só fui acordado com o vidro da janela batendo desordenadamente. Clarões e estrondos consecutivos afligiram minha cansada alma, me obrigando a levantar e verificar qual era o drama da vez. Um grande temporal havia se firmado e perto de amanhecer chovia horrores. Voltei para a cama resignado já antevendo a lamúria que estava por vir, mas antes aproveitei para ir rapidamente ao banheiro e eliminar a tempo boa parte da Pepsi tomada na noite anterior. Não demorei em voltar a dormir, embora tenha pairado aquele ar de preocupação no entorno do meu cocuruto. Mais tarde, ao despertar de vez, contemplei o silêncio que vinha do céu antes mesmo de abrir os olhos e esperançoso acreditei que de fato a inoportuna chuvarada havia passado, chegando a esboçar um sorriso otimista. Ao abrir a janela constatei uma realidade não muito animadora e desci preocupado para o café da manhã. Como de costume, Marcelo já havia terminado o seu desjejum e enquanto eu engolia iogurte com granola, conversava com ele assistindo Papa-Léguas na televisão do restaurante. Assim que o Fernando chegou, para a nossa alegria iniciou Tom & Jerry e por algum momento esquecemos o tempo disforme que assolava lá fora. O povo do hotel era muito bacana e conversamos um tanto com aquelas prestativas criaturas, trocando algumas ideias referentes às possibilidades de rumo que possuíamos. Havia duas opções de rota e nenhuma delas chegava a empolgar: ou fazíamos o trajeto original – cerca de 80 km até Curitibanos por estrada de chão; ou dávamos um balão maior e seguíamos pelo asfalto – porém beirando uma centena de quilômetros. Ambos desagradavelmente com muito morro. Roberto demorou a beça para descer e enquanto aguardávamos pacientemente a figura imperial, tentávamos decidir qual destino tomar. De qualquer maneira, teríamos que seguir até Fraiburgo e optamos por esperar o almoço antes de qualquer mudança de cronograma, embora naquele momento estivéssemos mais inclinados a manter o trajeto original. Foi um pé na rua e outro de volta para o hotel, pois a frialdade assustou e tivemos que puxar o estoque final de roupas quentes lá do fundo dos fedegosos alforjes. Chovia muito e fazia frio demais naquele instante. Iniciamos o que na nossa cabeça era o penúltimo dia dessa desigual jornada por volta das 10h45 de uma friorenta Videira – tiritando desagradavelmente no sofrido início da manhã.

DIA 6) DE VIDEIRA COM A INTENÇÃO DE IR ATÉ CURITIBANOS – MAS FICANDO NO MEIO DO CAMINHO EM FRAIBURGO...

O acostamento era muito ruim e dava medo pedalar com caminhões passando tão rápidos e tão próximos. Em alguns momentos a chuva caiu tão forte que mal conseguíamos enxergar por onde pedalávamos. Muita gente buzinando solidariamente, incentivando os dementes ciclistas em sua esquisita provação. Ausentes de ânimo e em total desolação - em alguns momentos sequer tínhamos motivação para estender o braço e agradecer o gentil gesto dos solidários motoristas.

As capas de chuvas não deram conta da água torrente e não demorou muito para que ficássemos completamente encharcados. O vento gelado agravava a sensação de frio e chegavam a doer os pulmões numa inspiração mais longa. Intuitivamente pedalávamos mais forte na esperança de aquecer um pouco mais a gélida e sofrida carcaça. Tremíamos sem parar e por muito tempo sequer trocamos algumas palavras uns com os outros. Até Fraiburgo pedalamos um pouco menos de 25 km e ao entrar na cidade procuramos desesperadamente por um restaurante. Nem tanto pela comida, mais para encontrar um local para se aquecer. O tempo feio e a cidade vazia lembravam em muito os filmes catástrofes, ilustrando bem o nosso desalento. Perto das 13h estacionamos as bicicletas pela última vez nessa viagem no primeiro restaurante que encontramos: Zezitos & Cia – e garanto que em todas essas nossas aventuras por Santa Catarina afora, poucas vezes fomos tão bem tratados. Sujos e molhados demais, sentimos até um pouco de vergonha em entrar no tão bem cuidado estabelecimento. Eu sequer conseguia segurar o prato, pois não conseguia parar de tremer e pedimos licença para ficar parado na frente do fogão até que o corpo aquecesse um pouco. Muita coisa passou nas nossas moleiras e almoçamos num preocupante silêncio. Roberto não parava de mexer no seu irritante smartphone até que “Sica”, o garçom engraçado – deu um tapinha no ombro do xarope e falou: - larga isso aí e vamos comer! Fazendo-nos rir por um bocado de tempo. Durante a sobremesa surgiu a ideia de abortarmos a viagem e isso doeu demais. Ainda tremíamos de frio e Fernando dava indícios de estar adoecendo. Resignado, muito triste e pressionado por olhares desanimados - acabei aceitando tal sina. Estava ciente que naquelas circunstâncias não havia mais condições de prosseguirmos e tive que admitir o fato de que infelizmente fomos vencidos pelo frio. Enquanto trocávamos de roupa, o pessoal do restaurante intermediava um longo frete até Lages para os quatro peregrinos e suas valentes bicicletas. Mesmo com roupas secas ainda levou algum tempo para pararmos de bater o queixo e nos sentirmos seres normais novamente.

Para caber os quatro mancebos e mais as espaçosas bicicletas, o proprietário da claustrofóbica van teve que fazer uma baita gambiarra arrancando os bancos grosseiramente via marretada, o que atrasou um pouco a nossa saída. Eu estava bastante decepcionado, embora me conformando aos poucos e até tentei me divertir com a viagem de volta. Queria apenas que o rádio daquela condução explodisse, pois a incessante música gauchesca maltratava demais os meus ouvidos. Roberto dormia, enquanto os três gabirus não paravam de falar bobagem. Chegamos de volta à Lages logo no início da noite e seguimos direto para a Sens Automóveis, onde deixamos o carro estacionado seis dias atrás. Tudo conferido e tão logo ajeitamos as tralhas - seguimos caminho rumo à saudosa Florianópolis em outro longo trecho de carro. Pelo menos no veículo oficial do Pedaladas, Roberto caprichou na seleção anos 80: Ultraje à Rigor, Blitz, Tokyo, Metrô, Absyntho, Herva Doce, Rádio Taxi, Heróis da Resistência, Kid Abelha, Roupa Nova, Ritchie, Egotrip e pasmem: Tetê Espíndola, Biafra e Dr. Silvana e Cia.! Ursinho Blau Blau nos fez franzir a testa e seguramos o riso até aonde deu. Insultos generalizados ao nosso amigo Roberto, naturalmente...

Nossa fanfarronice ciclística chegou ao seu fim um dia antes do esperado. Após meia-dúzia de dias pedalando e cruzando uma quinzena de municípios, abortamos a viagem antes do planejado, vencidos pelo frio e ficando pelo caminho na terra da maçã. Iniciamos a brincadeira numa demorada viagem de carro de Florianópolis até Lages, aonde ancoramos o Pedaladasmobil e seguimos nosso rumo de bicicleta. Iniciamos na manhã gelada de 23 de setembro e sentimos o drama de passar fome, sede e frio logo no primeiro dia. Nos arredores de Cerro Negro chegamos a pedalar com temperaturas negativas e ficamos encantados com a barragem da UHE de Campos Novos. Anita Garibaldi, Campos Novos e Treze Tílias foram as cidades que mais nos chamaram a atenção, seja pela beleza e organização ou pela hospitalidade de seus educados moradores. Visitamos algumas cidades maiores e sofremos com o trânsito de Videira e Joaçaba. O condicionamento físico inadequado dos comparsas de pedal nos obrigou a pedir duas constrangedoras caronas durante esses dias, me fazendo questionar o real propósito dessas viagens. A ideia inicial era ir até Curitibanos e finalizar o percurso oval em Lages – sete dias depois, o que não foi possível. Encerramos nossa mais inusitada desventura de forma precoce no dia 28 de setembro, um pouco antes das 13h em Fraiburgo, restando apenas um frete de van até Lages e de lá para nossos casulos na bela capital catarinense, perfazendo quase 400 km e praticamente seis horas de uma incômoda viagem motorizada.

No decorrer dessa inusitada bravata por terras serranas, passamos por 15 municípios catarinenses listados cronologicamente a seguir e devidamente ilustrados com suas respectivas bandeiras:

Lages – Capão Alto – Campo Belo do Sul – Cerro Negro – Anita Garibaldi – Celso Ramos – Campos Novos – Erval Velho – Herval d’Oeste – Joaçaba – Luzerna – Treze Tílias – Iomerê – Videira – Fraiburgo

  • Distância percorrida: constrangedores 363, 96 km (apenas um pouco mais que a metade da viagem do ano anterior). Já fomos bem melhores, indeed!;
  • Tempo total de deslocamento: 30 horas e 23 minutos. Sem contar as caronas;
  • Deslocamento médio: 12 km/h;
  • Média de horas pedaladas: em torno de 5 horas de forévis assados por dia;
  • Velocidade máxima atingida por alguma das quatro possantes: 70,5 km/h, do desarranjado Fernando (novamente);
  • Pneus furados: apenas um!, e logo nos primeiros minutos de viagem. - Mr. Tuff, Pedaladas saúda você!;
  • Quedas: curiosamente nenhuma!, pois prudência em cima das bikes é o que as vezes nos falta;
  • Coisas perdidas pelo caminho afora: um pisca traseiro Cateye de estimação, uma lasca do dedo do Rodrigo, porcas e parafusos de uma maneira geral, um boné da marca das três listras e a paciência... com gente que ronca, com gente que pede carona, com gente que acorda cedo e não deixa os outros dormirem, com gente que não desgruda do celular, com gente que demora para levantar, e por aí vai.

Considerações finais e agradecimentos:

Depois de cinco anos pedalando juntos nessas viagens mais longas, ficamos devendo em vários aspectos desta vez e creio que chegou o momento de repensarmos algumas coisas. Cada qual tem sua vida atabalhoada a sua maneira e cada vez mais possuímos menos tempo para poder pedalar e se preparar adequadamente para eventos dessa natureza. Houve displicência na parte física de alguns - o que comprometeu o andamento de toda a viagem. É fato que estamos ficando velhos e cada vez mais está sendo mais difícil vencer esses longos trajetos. Documentar a aventura - fotografando, filmando e transcrevendo os acontecimentos consome um tempo considerável e percebo que estamos chegando demasiadamente tarde nos pontos de chegada sem ao menos termos tempo de conhecer os lugares pelos quais nos propusemos a passar. É preciso ajustar as distâncias entre uma cidade e outra diminuindo o tempo de deslocamento para que possamos explorar mais adequadamente os trechos pedalados. Ideias diferentes para o mesmo propósito ainda geram desconfortáveis conflitos e em muitos momentos continuamos pecando na boa convivência. Pela primeira vez não cumprimos a nossa missão e uma reflexão sobre isso se faz necessário. Mesmo com todos os contratempos, o balanço ainda é positivo e aprendemos lições importantes nesses seis dias de convívio, muito deles expostos a condições extremas. Boas risadas foram dadas e pedalamos por alguns dos lugares mais belos pelos quais já rodamos em solo mágico catarinense. Por essa e tantas outras aventuras, de coração agradecemos: Vanderleia Kist, nossa melhor amiga em todos os aspectos; Ivete e Silvinha da Pizza Bis que sempre nos apoiaram incondicionalmente; Ivan e Marcos Sens que ajudaram demais na logística da encrenca no período em que cruzamos Lages e redondezas; aos simpáticos proprietários da Ciclista Campos – Gilson e Ana Maria, pelo prestativo serviço aos molambentos pseudociclistas que bateram a sua porta ao tardar da noite; Gean e mecânicos da Cicles Hoffman pelos cuidados dispensados as nossas preciosas bicicletas; Adilson da MBL confecções de Benedito Novo - pelo nosso novo fardamento; Senhor Miyagi, meu inestimável e temperamental rottweiler que não mordeu meu pai (desta vez!); e aos nossos fieis desocupados, que alheios ao bom gosto por leitura, continuam prestigiando nosso descabido site: Eleonésio, Waldson “Antigão”, Elton Xamã, Priscila “Guiga”, Éder Strutz, Dorgivan Santos, entre tantos outros.

Para finalizar, o tradicional vídeo de nossa intrépida aventura por ares serranos, em 1080p para o seu deleite, oras pois...

Comentários
Sáb, 19 de abril de 2014
Por: Waldson - Antigão cicloturista.
Ahahahah! Demorei mas apareci! Andei na correria nesses últimos dias.
Poxa, acho que fizeram bem em abortar a cicloviagem, haja vista estarem propensos a hipotermia.
Cicloturismo deve nos causar prazer e não nos trazer doenças e aborrecimentos. Se isso acontecer perde a graça.
Parabéns meus amigos, dias melhores virão!

Grande cicloabraço!
Seg, 07 de abril de 2014
Por: João Doggett
Sou fã de vocês! Cada vez mais. Baita viagem, fiquei até com inveja. E esse vídeo do final? Gabaritaram mesmo. Fiquem com Deus meus amigos. Me inspiro em vocês sempre pra tirar a preguiça do corpo. Tom e Jerry e Papa-Léguas, hahaha... Bom gosto, de fato vocês têm!
Abraço do amigo João!!!
Dom, 06 de abril de 2014
Por: Eleonesio Diomar Leitzke
Parabéns pelo divertido e instrutivo relato e pela lembrança deste mal acabado pseudociclista. Muito engraçada a parte do Sr Myiagy. Pode contar, sempre serei um leitor assíduo dos relatos.
Ainda encontro vcs pelo caminho.
p.s.: nos próximos dias o crazybiker.com.br estará de volta com nova roupagem.

Abração.
Sex, 04 de abril de 2014
Por: Éder Strutz
Parabéns Pessoal... Cada Relato é uma história fascinante!!! E Imprevistos acontecem mesmo, o importante é que tiveram experiencias e lembranças deste grande pedal em qual deixou vocês mais fortes... Vocês já não são mais os mesmos depois deste pedal!!!
Agora fico no aguardo por mais aventuras por Santa Catarina adentro...