Degelando por terras angelinenses em tempos de Carnaval
Escrito por: Rodrigo Martins em 01/05/2024

O longo tempo sem pousar na nossa estimada Angelina gerou um clima bastante saudosista na semana que antecedeu tal pedalada, mas que perdeu a sintonia com a alegria assim que tivemos que madrugar após mirradas horas de sono. Farinha Láctea com Nescau até animou o feioso início de dia nublado e embora o trânsito agitado da sempre movimentada BR-101 logo de manhã cedo tenha causado alguma tensão, sequer reclamos de pedalar no intenso acostamento da dita rodovia federal mais perigosa da nossa Pindorama. Na vizinha Palhoça nos encontramos com o também sonolento Fernando e passado a breve chuva, seguimos pedal numa temperatura bastante agradável. Sem a saudosa Ponte do Arame, arrastada nas terríveis enxurradas de 2022, o volteio para cruzarmos o Rio Cubatão foi um tanto maior.

Com mais de um quilômetro de altura, aquele que um dia já foi um vulcão, por um bocado de tempo pairou a nossa esquerda e enquanto nos observava de esguelha, lembrávamos de uma das historietas mais bacanas do nosso folclore ilhéu: “Diziam os antigos que em uma noite de lua cheia, as bruxas da ilha organizaram uma festa na praia do Itaguaçu e todos os personagens folclóricos estavam convidados, exceto o malcheiroso e autoritário diabo. Ofendido, apareceu na festa enfurecido e transformou as bruxas em pedra. Então, o gigante do Cambirela que acompanhava a festa de longe viu o que aconteceu e chorou tanto que suas lágrimas viraram o mar, ficando tão triste com a perda das bruxas que se deitou para nunca mais levantar”.

Já distante da vista do tal gigante adormecido, cruzamos brevemente o espaço urbano de Santo Amaro da Mulher do Imperador e seguimos caminho muito rapidamente pela estrada da Varginha, decepcionados por novamente não avistar nenhuma criatura fantástica ou entidade extraterrestre ou sequer um mero OVNI. Na Alta Varginha nos deparamos com a primeira grande subida do dia e sem delongas, o sol verteu seus raios em uma desagradável abundância em nossos cocurutos. Empoeirada e sem sombra, a SC-281 - estrada esburacada que liga São Pedro de Alcântara a Angelina -, foi a nossa constante na maior parte do pedal e segundo dizem, será finalmente asfaltada qualquer dia desses. Sem passar por uma birosca aberta por muito tempo, sofremos com o calor de 42º na moleira e somente lá pelas tantas, já quase sem água e um pouco antes somente de começar a subir de verdade foi que nos deparamos com uma providencial barraquinha de beira de estrada que acabou se tornando um bufê de coisas geladas para o trio excursionista.

A prosa com a dona Fabi e seu simpático marido rendeu uma longa resenha e boas risadas no mesmo tempo que descansávamos as canelas. Após sermos muito bem servidos do serviço de bar e mercearia, nos ajeitamos para sair, mas não sem antes ouvir uns maldizeres da pouco simpática Madame Mim local, vizinha estressada e desbocada que excomunga qualquer um que por ali se aventure a parar no horário de sua preciosa sesta.

De muito bom grado aceitamos a trégua do sol e subimos os morros finais curtindo RAMONES e penando menos que de costume. Ainda era dia quando atravessamos o centrinho de Angelina em direção a conceituada e movimentada padaria local, muito bem habilitada em atender seres pedalantes esfomeados. Considerando a pequena TV de tubo com imagem horrorosa, chuveiro estilo conta-gotas e o ventilador de teto tão alto que parecia não fazer vento, ficamos com a desagradável sensação de termos pagado um pouco caro pelo pernoite na pacata hospedaria. De banho tomado e soneca tirada, caminhamos por um par de quilômetros até o local onde acalmaríamos a fome sem ver nenhum ser humano perambulando pelas redondezas escuras que separam o hotel da lanchonete. Enquanto éramos fartamente servidos de três modestos X-egg (com e sem carne), fritas, palitinhos de queijo e vários litros de Coca-Cola bem gelada, presenciamos um avinhado ser perto do fim da meia idade fazendo jus ao sábado de Carnaval escafedendo descaradamente após dar ré e bater com seu carro numa motocicleta estacionada. Aparentemente ninguém se emocionou com o acontecido, além apenas do desafortunado proprietário da motoca que ainda descrente ao acontecido, franziu o cenho e saiu atrás do sisudo malandro que naquela altura dos acontecimentos deveria estar bem ao longe. Antes de voltarmos para a hospedagem, demos uma incerta na formosa gruta de Nossa Senhora de Lourdes e pouco depois da meia-noite já estávamos roncando estatelados na confortável cama da estalagem, sonhando com o desjejum da manhã seguinte.

Com predominância por doces, o generoso café da manhã foi agradavelmente bom, pecando apenas pela ingrata ausência de sucos e quem não bebe café se obrigou a passar novamente na padaria antes de seguir viagem de volta. Nove e tanto da manhã já estávamos subindo aquilo que foi uma grande descida na véspera, agora com o impiedoso sol castigando novamente. Vencido o morro inicial, passamos a descer um bocado e paramos apenas na querida tenda mágica para garantir a água e o refrigerante para o restante da divertida cicloviagem.

Fernando optou por voltar pela Varginha enquanto eu e o Alvanir seguimos pelo caminho chato e ventoso do final da rodovia Saint Peter-Senhora Jolie. Chegamos em casa pouco após as 15h, menos cansados do que o esperado e felizes pela tradição mantida de um volteio em Angelina ao menos uma vez por ano, além de mantermos as orelhas imaculadas dos prováveis bisonhos hits de Carnaval.

 

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