Indiada ciclística em tempos de Páscoa
Escrito por: Rodrigo Martins em 18/04/2021

No dia dos povos indígenas de um par de anos atrás, optamos por fazer uma indiada ciclística separada. Enquanto Fernando e Rodrigo surrupiavam caminho rumando de carro mais para o sul do estado, Marcelo desde cedo pedalava com o nariz apontado para os arrabaldes de terras blumenauenses. Nem havíamos chegado em Braço do Norte e ele já cruzava o Vale do Itajaí, ziguezagueando por estradinhas de chão batido rumando forte em direção a saudosa capital da cerveja. Marcelo saiu de casa abastecido com o belo café Executivo oferecido pela quitanda da Dona Vanderléia, enquanto que na casa da Tia Irene, o segundo desjejum foi bem mais modesto e sonolento, sendo que mal sentimos o gosto do cavaquinho dormido. Nessa altura da brincadeira, o refrão do quase-poperô-oitentista não saía de nossas cabeças e numa rápida googlada na letra da pegajosa canção infantil, descobrimos que nos anos 80, Dona Maria Muito sem Graça Meneghel já pincelava o óbvio contrariando aquilo que nos foi estranhamente ensinado lá no primário de algumas décadas atrás: Brasil não foi descoberto e sim invadido. Índio não faz mais lutas, Índio não faz guerra, Índio já foi um dia, o dono dessa terra...”.

Era também final de semana de Páscoa e em lugar nenhum da nossa hospedaria havia um mísero chocolate sequer, o que nos fez enrugar a testa antes mesmo de iniciar a primeira longa subida da manhã. Fazia mais calor do que gostaríamos e a lentidão matinal deixou de ser uma escolha. Marcelo estava muito mais perto de Blumenau do que estávamos do Parque Estadual da Serra Furada, nos recantos de Grão-Pará e fomos salvos mais uma vez pela providência de meia-dúzia de latinhas glaciais de Pepsi. Aparentemente, nosso amigo passou menos sufoco e teve um lanche não tão dramático no tempo que o nosso almoço do desespero foi no meio do nada, num restaurante estilo cancha de bocha onde o peixe servido acabara de ser pescado pelo próprio MasterChef do simpático lugarejo. Cobraram tão barato que ficamos com vergonha de pagar tão pouco por algo tão bom que insistimos muito para que aceitassem um pouco mais e nisso uma longa e divertida conversa se estendeu, dando o devido tempo para as canelas descansarem e o solaço diminuir. Nem o pianço aguentou quando um grupo sanfonado iniciou uma afinada cantoria no pior estilo limpa banco bem bagual, repleta de choramingos cafonas dedicadas ao não tão bom e velho chimarrão, e sumiu rapidamente, assim como nós.

Marcelo já estava passeando pelo centro de nossa festiva história, contemplando prazenteiramente os saudosos Bude e PROEB. Nesse mesmo instante já estávamos mais próximos do tal buraco da Serra Furada e entre uma prosa e outra, cada nativo apontou para uma direção diferente e a sensação de termos ido pelo caminho errado ficou bastante evidente quando o mato bateu no queixo e as bicicletas tiveram que ficar para trás. Estávamos tão próximos da celebridade geológica local que resolvemos arriscar uma pernada bastante matagal adentro até ouvirmos um esturro descontente de algum felino gigante, nada parecido com nenhum dos Thundercats. Com as pernas bambas e cagados de medo, recuamos sorrateiramente até não ouvir mais o ronronar do gato-demônio que nos espreitava. Quando atingimos uma distância segura, aceleramos o passo até começarmos a correr instintivamente numa típica situação de - Não preciso correr mais que o gato gigante, apenas mais que o meu amigo ao lado.

Antes de seguir caminho para a singela hospedaria situada nos Alpes da Vila Itoupava do muito camarada Eleonésio, Marcelo ainda teve tempo de cicloturistar pela vila da Páscoa numa diligência atrás de quitutes achocolatados na bela e festiva Osterdorf. O coaxar da saparia indicava que a noite já havia se formado e para nós o caminho de volta se apresentou mais longo que o de ida. Como não bastasse o susto e nada sensibilizado com as longas e intermináveis subidas, o zombeteiro GPS recalculou a rota indevidamente mandando a desafortunada dupla para bem mais além do que deveriam. Nisso, no distrito mais alemão de Blumenau, na hospitaleira albergaria do Leão-da-Montanha, o privilegiado Marcelo já se esbaldava no melhor pão com salsicha gourmet embebido em mostarda escura da história. De bandulhos cheios, ele e o Eleonésio jogavam conversa fora bebericando uma agradável Malzbier e muito provavelmente rindo às custas da interminável expiação dos outros dois comparsas sofridos.

Demoramos tanto para chegar na nossa tradicional estalagem de tempos de Páscoa que a família paranoica do interior enviou um esquadrão de resgate com dois parentes aflitos numa pick-up, bisolhando com atenção toda e qualquer criatura pedalante na escura noite braçonortense. Certamente já estavam pensando o pior e duvido muito que entre as tragédias imaginadas, o devoramento por um chupa-cabra felídeo que não possui nome na região fora sequer considerado. Já perto da meia-noite, sobrevividos e exaustos, de banho tomado e de pança estufada, foi tempo de deitar na cama e esperar o sono que não demoraria a chegar. Nesse meio tempo, brincamos de mandar mensagens malcriadas para o Marcelo e procuramos no VocêTubo os sons dos felinos de grande porte mais prováveis da assustadora cilada, como pantera, puma, onça-parda, jaguatirica, gato do mato, leopardo, leão-baio e outros gatos mutantes. A tocaia do Lion Man do mal realmente assustou e sem chegar a um consenso de qual animal nos mirou de janta e tentando continuar não pensando no pior que poderia ter acontecido, mudamos o canal e fomos ouvir a canção chiclete (já com o refrão adaptado) que ainda insistia em atormentar nossas já costumeiramente atormentadas cacholas: Vamos brincar de índio, mas sem gatinho pra nos pegar...”

Comentários
Dom, 18 de abril de 2021
Por: João Doggett
Bom! Muito bom mesmo! Parabéns pelo belo site. Fotos sensacionais e textos engraçadinhos como sempre. No aguardo também por novos histórias.
Abraço do amigo John!
Dom, 18 de abril de 2021
Por: Eleonésio Diomar Leitzke
Excelente, nobre redator, certamente nos encontros lendários sempre rola a zoeira com os outros, a regra é clara, "Perca o amigo, mas nãp perca a piada" e viva as tretas. No aguardo de mais relatos.