Grandes clarões de relâmpagos cada vez mais próximos se desenhavam sobre as imensas árvores que nos rodeavam. O inesperado e repentino dilúvio assustou a despreparada dupla que lutava contra o frio enquanto percorriam o sinuoso caminho que atravessava o que parecia ser uma sinistra floresta com vocação de assombrada. Nada de humanos, bovinos ou jaguaras perdidos, apenas um saudoso orelhão (o TP de antigamente) ao lado de um poste torto que bruxuleava com suavidade o seu entorno. Naquele momento pedalávamos pelo centrinho de um pequeno vilarejo despovoado e situado no meio do nada. Com fome e sem capas de chuva, tiritávamos aos montes desconfiando sempre da boa-fé do presepeiro GPS que parecia mais assustado que nós com a forte chuva que não aliviava. Rápidos e as escuras, mantínhamos um ritmo forte na esperança de vencer a friaca excessiva e sem avistar nenhum lampião ou luminária que indicasse vida humana na cercania, pensamentos dos mais pessimistas ganhavam cada vez mais forma nas mentes dos já cansados aventureiros. Rio Fortuna ainda estava longe e penamos um bocado subindo por estradas desconhecidas e muito lá pelas tantas, quase de madrugada somente é que parou de chover. Com a providencial estiada, uma lua gigante passou a nos acompanhar até o final da cansativa pedalada. Exaustos e absorvidos nos próprios pensamentos, falávamos menos e seguíamos cabisbaixos torcendo para Braço do Norte não demorar a chegar. Ainda tínhamos pelo menos mais duas dezenas de quilômetros para vencer, nesta feita com o alento de um restante de trajeto plano, asfaltado e longe do frio de instantes atrás.
Contudo, nossa historieta começou várias horas antes, num tardio e ensolarado início de dia com a dupla viajante mirando o Sul catarinense pelo caminho mais penoso. O sono em dia e o bandulho cheio fez a manhã render bem e sequer percebemos a monótona esticada até os arredores de São Pedro de Alcântara. Bastante familiarizados com a famosa estrada da Varginha e há tempos sem se emocionar por lá, ainda assim descemos com olhar desconfiados e atentos a possibilidade de deparar com alguma forma de vida alienígena disposta a confabular com os terráqueos curiosos. Santo Amaro da Imperatriz e Águas Mornas só olhamos de canto e sem muitas delongas seguimos torrando a moleira pelos nada divertidos aclives de uma 282 não duplicada e muito movimentada. Catorze quilômetros adiante, num escaldante sol de meio-dia saímos da famigerada BR para ladear um trecho do rio Cubatão na SC-435 que faz a ligação com São Bonifácio e São Martinho.
No primeiro meio-fio sombreado que encontramos fizemos a primeira paragem para refrescar o cocuruto e iniciar nosso segundo e açucarado desjejum. Estrada calma, asfalto bom e o sol mais ameno fizeram as intermináveis subidas serem menos sofridas e após mais de três dezenas de quilômetros padrão morro acima, paramos para o tão esperado e merecido almoço. Não havia muita esperança de encontrar um restaurante aberto já quase no final da tarde, restando apenas o contento com lanches pouco saudáveis, mas de sabor agradável, na bacana e movimentada padaria local. De colonização alemã e cercada por muito verde, São Bonifácio é mais conhecida por suas exuberantes cachoeiras, mas dizem ser também a terra da sopa de galinha caipira, do pão de milho, das trilhas ecológicas e dos esportes radicais como o rafting e o rapel. Com a fome acalmada e descansados, seguimos rumo dando adeus ao gracioso asfalto para enfrentar uma pesada estrada de chão empoeirada à beça e repleta de buracos.
Nesse ponto da cicloviagem já estávamos a mais de 80 km de Florianópolis e enganados por uma interestação bipolar que nem mesmo sabia se ainda queria ser verão, não demoramos para descobrir que sequer tínhamos roupas adequadas para o que estava por vir. Nuvens carregadas logo se formaram e a temperatura caiu muito rapidamente com a noite parecendo querer chegar antes do que deveria. O forte vento contra trouxe junto os primeiros pingos e daí para frente nossa pedalada foi um total horror. Raios clareando uma noite muito escura, trovões ribombando adoidado e uma fome do cão!; chuva forte, princípio de hipotermia e a constante sensação de totalmente perdidos deram o devido apego ao drama. Deveras preocupados com a insensata ideia do distante pedal e a falta de notícias, a parentela ligava desesperada por algum sinal de vida e um “desprovidos de bom senso” foi o mais elegante dos carinhosos xingamentos que recebemos.
Pouco depois da meia-noite e já quase na casa da Tia Irene (nossa generosa anfitriã), a polícia braçonortense nos abordou na pracinha principal da cidade demonstrando certa curiosidade com os inusitados forasteiros. Encucados e sem muito entender, logo partiram decerto imaginando de qual hospício teríamos saído. Concluímos nossa curiosa jornada cruzando o restante do centro de uma Braço do Norte muito mais movimentada, iluminada e desenvolvida do que lembrávamos. Entre o astro do dia e o astro da noite, foram mais de 20 graus de diferença e após percorrer quase 160 km com o Strava apitando acima dos 2500 m de elevação, era quase certo que os selenitas davam boas risadas da nossa presepada lá de cima. O banquete da madrugada tinha camarão e outros quitutes, mas o sono era tanto que aproveitamos melhor o café da manhã na manhã seguinte. A ideia era voltar pedalando por outros descaminhos, mas o demasiado maltrato do dia anterior acabou não permitindo, restando a dupla ajojada pedir socorro para a gentil Cristina que de muita boa vontade veio nos socorrer com o guincho amigo da rodada. - Acho que nunca mais faremos um pedal desses!, refletíamos em voz alta enquanto retornávamos de carro para a capital catarinense. Todavia, antes de chegarmos em casa já dávamos trela para outras ideias e combinávamos o quando de novas encrencas ciclísticas sem sentido.
Pois é e assim é.
Em homenagem ao meu melhor amigo que agora se foi.
“A eternidade da lembrança acalma a efemeridade da vida”.
Descanse em paz, meu bom e velho companheiro.