O Circuito das Araucárias: a história de Três sujeitos intoxicados, um observador e um divino bacio
Escrito por: Rodrigo Martins em 02/01/2021

O mundo era bastante diferente desde a última historieta por nós publicada. Hermione não era uma quarentona e não fazíamos ideia que Luke Skywalker possuía poderes extranaturais nível Dragonball Z. Nossa terceira carraspana num show do Toy Dolls ainda estava por vir e o fiasco da seleção canarinho na longínqua União Soviética não passava de uma profecia. Difícil acreditar que Roberto Leal bateu o pé pela última vez e que nunca mais veremos Stephen Hawking nos Simpsons novamente. Walter Mercado se foi, dois dos 007 também e Stan Lee não era tão imortal quanto pensávamos. Malcolm Young e Eddie Van Halen foram visitar Joey Ramone e acho que não voltam mais. O dólar passou a flertar eternamente com os 6 pila, Senhor Miyagi foi devidamente homenageado no já cult Cobra Kai e o último disco dos Zumbis do Espaço nem é mais tão novo. E então, fomos assolados por uma monstruosa pandemia que simplesmente devastou o planeta, interrompendo a vida de mais de 1,8 milhão de pessoas, até o momento. Entramos numa rígida quarentena e questionamentos vieram à tona. Tivemos que aprender a conviver com a irresponsabilidade, ignorância e falta de empatia de muitos enquanto pessoas próximas iam adoecendo e nisso, quase fomos vencidos pelo cansaço. Medidas de controle continuam sendo seguidas, mas a longevidade dessa epidemia generalizada fez com que naturalmente relaxássemos e a temida segunda onda parece ter realmente chegado, mas com o alento da perspectiva do início dos trabalhos de imunização. Nossos hábitos já não são mais os mesmos, tampouco nossas crenças e nos vimos obrigados a parar e refletir. Era tempo de desacelerar, de se recolher e repensar tudo outra vez. Sentimos saudades de coisas que outrora foram importantes para nós e no meio de todo esse processo, paramos para carinhosamente repaginar nosso desamparado site e com isso resgatamos a vontade de escrever. Algumas histórias ficaram por ser contadas e enquanto pedalar for algo divertido, outras tantas ainda serão vividas. O conto escolhido para retomarmos nossa brincadeira cicloliterária foi o relato da nossa última viagem ciclística feita em meados de 2016, numa tentativa de perfazermos o tão falado Circuito das Araucárias. A narrativa a seguir, é a grotesca história da desventurada trajetória por terras do norte catarinense de três sujeitos intoxicados, um observador e um divino bacio.

Ao que parece, a ideia de fazermos o Circuito das Araucárias surgiu logo findado o circuito análogo com pompas de popstar, o Vale-Europeu e pouco mais de meio ano após concluída a charmosa aventura, caímos na estrada novamente. Até São Bento do Sul foram mais de 250 km de estrada e para estarmos lá antes das 9h, a matinada teve que ser sofrida. No estacionamento da Biblioteca pública fazíamos nosso segundo desjejum enquanto arrumávamos nossas tralhas. Na porta do banheiro havia um profético adesivo de aviso de risco biológico (Biohazard) que nos fez segurar um pouco mais os efeitos da Coca-Cola gelada. Dez e tanto da manhã iniciamos nossa cicloviagem por terras são-bentenses num frio considerável e com boas possibilidades de chuva. Estrada difícil, com muita lama e algumas pedras soltas ditaram o ritmo lento da manhã. As constantes descidas iniciais aumentaram a sensação de frio e bastou abrirmos a boca para reclamar que logo as longas subidas apareceram. Não choveu e paramos apenas para um rápido bufê livre de uvas passas no alforje do Fernando. O primeiro carimbo conseguimos já em terras corupaenses, próximo ao final da tarde, num boteco que já estava fechado, mas com um proprietário deveras bacana e exageradamente falante.

Seguindo viagem, quando as casas começaram a rarear, o pedal da bicicleta do Rodrigo estragou de vez, o que gerou muita preocupação. O diagnóstico da primeira oficina foi desanimador, o que nos obrigou a tentar a sorte na seguinte. O torneiro mecânico fez cara de quem sabia das coisas e prometeu uma gambiarra no capricho para o dia seguinte. Almoçamos por volta das 19h, após pedir duas pizzas gigantes de calabresa e alguma outra coisa com carne, agora já instalados no diferente hotel. A classe popular (Rodrigo, Fernando e Toninho) se alojou num quarto enquanto o príncipe em exercício (Marcelo) em outro. Varal atravessado com roupas penduradas ditavam o estilo maltrapilho de um quarto que carecia de bastante tomadas. Fomos dormir por volta das 22h30 ressabiados com um gato fantasma que zanzava de quarto em quarto, ronronando assombrações.

Madrugamos na manhã seguinte e antes das 7h já estávamos comendo pausadamente um pão com manteiga bastante sem graça enquanto Fernando sabiamente esticava o sono. Nesse meio tempo, após tanto reclamarmos, Marcelo foi atrás da cartilha oficial do Circuito, encontrando-a poucas pedaladas adiante, na Secretaria Municipal de Esporte e Turismo da bela Corupá. É um livreto muito bem elaborado com mapas, etapas detalhadas com distâncias e pontos de visitação de cada município, características das estradas e grau de dificuldade, sugestões e telefones úteis, dicas, explicações em geral e uma lista dos principais atrativos pelos quais temos a curiosa impressão de não termos passado por nenhum deles: Estrada Imperial Dona Francisca, Campos do Quiriri, Rota das Cachoeiras, Morro da Igreja, Cascata Paraíso e a tal da Maria Fumaça. No interessante livreto há também um festival de setas e números que servem mais para confundir do que orientar e as páginas finais são reservadas para os carimbos dos 8 trechos do trajeto e seus respectivos pontos de carimbagem, com endereço e telefone. Com as rotas dos carimbos em mãos, nossa preocupação se voltou então para o pedal idoso da GT do Rodrigo. Célio, o especialista em usinagem geriátrica fez um trabalho incrível, cobrando menos que o valor de um McLanche Feliz. Na padaria local, compramos comida para a viagem, já prevendo um tradicional dia de fome. Bem mais adiante, o almoço acabou sendo um caprichado X-Salada no belíssimo Parque Natural das Aves, instantes antes de começarmos a subir aos montes. Trecho curto e bastante difícil, com chuva fina e muita neblina. Faltando pouco mais de duas dezenas de quilômetros para o fim do dia, esfriou drasticamente, nos obrigando a puxar as capas de chuva.

Atravessamos o centrinho de Campo Alegre no início da noite e após carimbarmos nosso estimado álbum, seguimos ainda um longo trecho pelo asfalto liso de uma assustadora BR sem acostamento e com muitos carros passando próximos demais do orelhame da plebe pedalante. A tensão aumentou ainda mais quando ficou nítido que o GPS estava tão ou mais perdidos que nós. Fomos e voltamos algumas vezes, para lá e para cá, até acertamos o prumo novamente. Pedalamos por um longo trecho numa bela estradinha de chão com os nossos faróis desafiando as trevas da noite absoluta no meio do nada. Pousada muito bacana e bem escondida, com arquitetura fantasmagórica no melhor estilo Terror em Amityville, com poucas tomadas novamente, wi-fi ruim demais, mas com janta beirando a excelência. De banho tomado e Hipoglós passado, foi apenas o tempo de ignorar as reclamações do Toninho sobre a lentidão da internet capenga e contemplar o barulho da chuva forte na noite fria campo-alegrense para desmaiarmos bem mais cedo que o previsto.

Passos Hobbits acelerados em direção ao banheiro logo de manhã cedo é sempre motivo de preocupação. Da cama ouvia murmúrios sobre alguém estar com diarreia e franzi a testa imaginando as consequências de se adoecer durante uma cicloviagem. As corridinhas de passos apertados e portas batendo desesperadamente davam um tom de seriedade a uma situação que em outras circunstâncias seria considerada engraçada. Sorte o banheiro feminino estar desocupado, senão haveria congestionamento antes mesmo de eu sair da cama. Toninho não estava bem e já falava em desistir da empreitada antes mesmo do desjejum. Para piorar, descobri que ele não estava sozinho... Fernando fazia também campanha no vaso sanitário da assustadora pousada. O café da manhã foi dos mais bonitos que já nos foi alguma vez servido, contudo muito pouco apreciado pelo clima nada propício. Saímos tarde, atrasados pelas idas constantes ao banheiro da dupla com soltura e já logo na primeira subida, Rodrigo desatinou a vomitar. Chovia naquele instante e sem conseguir sequer se ajeitar em pé, deitou-se no primeiro abrigo que encontrou. Poucos metros adiante, entre uma risada e outra, Marcelo coçava o cocuruto de preocupação. Na igreja local, não muito adiante, Toninho descobriu (pelo menos assim alegou) que a fechadura da porta do banheiro estava estourada e o que se sucedeu foi uma bizarra caravana de três desesperados pseudociclistas se alternando no Santo bacio com diarreia em magnitude 10 na Escala Richter de porquindade.

Estrondos do trovão anunciavam as seguidas desaguadas, interrompidas sempre por desesperadas batidas na porta do desvairado seguinte e quem ousasse demorar um pouco mais, era xingado até a eternidade. Já era malcuidado e catingoso e após nossa inusitada comitiva, o ar do pequeno banheiro tornou-se praticamente irrespirável e abstrair tudo que estava acontecendo era absolutamente necessário para mantermos, ao menos, nossa saúde mental. O mal que estava no nosso corpo, ora saía por cima, ora saía por baixo, de forma incansável e assustadora. Foram minutos de desespero, talvez horas. Nesse momento já tínhamos apego pelo vaso sanitário e o considerávamos um ente próximo, um verdadeiro e querido amigo com o bônus de possuir propriedades divinas. Ao longe, numa distância segura aos ares impuros, Marcelo apenas observava e já nem achava mais graça, parando inclusive de tirar fotos constrangedoras nossas. Com semblante triste, se resignava ao iminente fim da nossa fascinante jornada, pois naquele instante sabia que os belos caminhos ladeados pelas imponentes araucárias ficariam de vez para trás. Toninho, já um pouco melhor, seguiu junto com o Marcelo até a pousada. Estávamos diante agora de uma logística complicada, uma vez que nossos carros se encontravam numa cidade diferente da que capengávamos de bicicleta. Os dois moribundos restantes empurraram as bicicletas muito lentamente até a pousada para pedir asilo de volta e antes de tomar o merecido e necessário banho, ainda foram ao banheiro algumas outras tantas vezes. De remédio tomado, deitaram na cama esperando o febrão passar, enquanto o Marcelo se empenhava em resolver toda a encrenca estabelecida. Chegando em São Bento, um dos carros não pegou e a bateria arriada só aumentou a vontade de chorar. Até conseguirem resolver mais essa encrenca e ainda voltar para buscar os dois acamados, foi-se um bocado de tempo e junto, quase toda a paciência. Ainda tínhamos uma longa viagem de carro, numa noite chuvosa e movimentada pela BR-101, parando apenas no posto Sinuelo para um último barrelote emergencial. Chegamos em Florianópolis por volta das 19h30, ainda muito ruins, sofrendo numa noite febril e visitando constantemente o banheiro durante a longa madrugada que se seguiu. É certo que um dia voltaremos para terminar o Cicuito das Araucárias, mas o que diabos aconteceu conosco?, matutamos repetidamente.

*Carinhosamente dedicamos o nosso retorno ao querido Waldson Gutierres, O Antigão. Um dos primeiros e mais frequentes leitores de nossa simplória página. Grande pessoa e cicloturista entusiasta, que inspirou um bocado de gente a se aventurar por estradas mais distantes. Continue descansando em paz e muito obrigado por tudo, querido amigo de todos nós cicloviajantes.

Comentários
Qui, 29 de dezembro de 2022
Por: Nome
Qui, 29 de dezembro de 2022
Por: Nome
Qui, 29 de dezembro de 2022
Por: Nome
Dom, 07 de março de 2021
Por: Dario Leite
Parabéns pelo retorno.
Ansioso por acompanhar novas aventuras.
Ter, 05 de janeiro de 2021
Por: Juan Pablo Borges
Finalmente voltaram! Heheheh
Uma pena que seus sistemas gastrointestinais entraram em curto ao longo da viagem, mas a história foi (até certo ponto) divertida - quando passou a ser triste... Rsrs
Muito bonitas as fotos! Espero que em breve tenham uma nova história a compartilhar e com final agradável junto ao final da viagem planejada! Forte abraço!
Ter, 05 de janeiro de 2021
Por: JEAN KINDERMANN
Foi preciso quase que o mundo inteiro parar, para então, finalmente, o site e suas narrativas primorosas voltarem ao ar... Benza Deus... Mas parabéns meus amigos, o site e suas histórias estão ótimos, e que não pare por aí né fariseu!!!
Seg, 04 de janeiro de 2021
Por: João Doggett
Aê!!! Finalmente estão de volta! Caras, que site lindo! Ficou demais! E ri um bocado com as palhaçadinhas de vcs! Hahahaha... Massa!