Pedaladas de Páscoa: a história de uma cachorrinha (agora) chamada Fernanda - segunda parte
Escrito por: Rodrigo Martins em 22/05/2015

Roberto dormindo foi a melhor imitação de alguém morto que eu já vi – e isso me comoveu, me obrigando a sair do quarto marchando nas pontas dos pés com todo o cuidado do mundo para não atrapalhar o sono do pouco belo adormecido, embora eu acreditasse que barulho algum nesse mundo terrestre o faria despertar naquele momento. Recém havia amanhecido e nenhuma alma havia levantado, a exceção do meu Tio que na falta do que fazer, rastelava os pedregulhos do seu jardim. Gente falando demais de manhã cedo me causa aflição e o café da manhã foi aquele furdunço, o que me fez sentir falta da bonança de alguma meia hora atrás. Acabei voltando para cama e ainda consegui alguns minutos a mais de sono enquanto o trio não parava de tagarelar postados a mesa. Nesse ponto da história a cachorrinha já havia sido rebatizada de “Fernanda” e estava totalmente enturmada, salvo pelos outros dois guapecas da casa que observavam atentamente toda a movimentação com algum tipo de reserva, vez ou outra ameaçando-a com uma sutil rosnada. Eram nove e tanto da manhã quando saímos para a labuta e tal qual no dia anterior - uma interminável subida logo de início. Mais do que o forte sol, o maltrato maior vinha do pouco agradável chorume de porco chapiscado no asfalto que aromatizou boa parte da nossa fedegosa manhã. Pouco antes da metade do que tínhamos para subir, encostamos num sombreiro para aliviar o compasso, esfriar a moleira e bebericar um pouco de nossa água (que gradualmente vinha ganhando aspectos de chá). Da janela da casa ao lado, uma sisuda senhora nos aborda com uma estranha pergunta: - Estão vindo lá de baixo? Vocês por acaso não acharam uma bicicleta preta? Parece que caiu de um carro. Franzimos a testa e balançamos a cabeça negativamente sem ter coragem de abrir a boca para responder tal tipo de pergunta. Afinal de contas, quem diabos é capaz de perder uma bicicleta desta forma? Nisso, poucos passos à frente na casa seguinte – um caipira germânico vestido de forma engraçada berra aos quatro cantos chamando por sua mãe, até que ela aparece e indaga o gigante rebento de maneira pouco paciente – o que é meu filho?! O pai está aí? Questiona em tom de preocupação, o pançudo rapaz. - Diz pra ele que ele precisa vir logo, pois quebrou o vibrador. Foi praticamente instantâneo! Rindo muito e de olhos arregalados, montamos nas bicicletas rapidamente e zarpamos dali o quanto antes... antes que o terrível cheiro impregnado no ar também nos afete. Gente esquisita demais - até para o nosso gosto, e isso era fato.

Os quase quinze quilômetros de subida serviram para abrir o apetite, forçando uma providencial parada em Pinheral para um rápido lanche (melhor garantir, pois nada sabíamos do que viria pela frente em termos de gastronomia). Aproveitamos o convidativo e sombreado gramado do jardim da igreja local para deitarmos e esticarmos as pernas – bebendo uma Itubaína gelada (“desde 1954” dizia o rótulo... - Deve estar estragada então, concluiu o Marcelo). A brincadeira só começa de verdade quando o asfalto fica para trás e as divertidas curvas empoeiradas bastante morro abaixo rapidamente nos fizeram esquecer o malcheiroso asfalto, embora a ânsia de vômito tenha custado um pouco a desapegar. Chegamos na pequena São Martinho com o relógio cravado nas 13 horas de um dia absurdamente ensolarado com o termômetro marcando horrorosos 35°. Felizmente, apesar do horário tardio, ainda conseguimos pegar as sobras de um bufê ainda aberto e aquela maquiada com ovos fritos que a boa moça do restaurante nos fez deu uma sensação de ser bem melhor do que realmente era. Com as panças estufadas, empurramos as bicicletas até a pracinha e deitamos um pouco para tirar aquela cochilada básica enquanto o forte sol não aliviava. 

Em algum momento o calor diminuiu e renovados pela providencial soneca - resolvemos acelerar a brincadeira. O chão ruim de uma estrada que está sendo pavimentada desde sempre e não fica pronta nunca atrapalhou um pouco o rendimento, mas não diminuiu o fator diversão. Chegamos em Armazém já passados das 17 horas, desesperados por qualquer coisa gelada. Sabíamos que não estávamos longe de Braço do Norte e aquela paradinha do lanche de fim de tarde deu uma sensação de estarmos quase no fim. Crente que seguiríamos o caminho mais fácil, Éder aponta o dedo para o muito além e brinca com o Roberto: - está vendo aquela antena lá em cima? Vamos passar por lá. Roberto que não quis deixar por menos, inflou o peito e respondeu: - tranquilo! Dois bestinhas, por assim dizer - pois a partir disso, começou a nossa sina. Subimos, subimos e subimos... A cada curva ficava a esperança de que ela estivesse escondendo uma descida, mas a estrada só piorava, ganhando aspectos de trilha e com a inclinação aumentando cada vez mais. O suor escorria tanto que chegava a irritar os olhos. A noite caiu e a temperatura baixou bruscamente. Continuamos subindo ainda por muito tempo. Lembro que em algum momento olhei para trás para ver aonde estava o restante do grupelho e um pouco assustado fiquei quando observei a tal da antena (que lá de baixo parecia tocar o céu...) um pouco abaixo do nível de aonde eu já estava. E essa novela de morro acima durou mais um tanto e só parei na bendita bifurcação que finalmente nos mandaria para baixo outra vez. Agrupados novamente depois de muito tempo e impiedosamente atacados por bilhões de anormais-mosquitos-monstros, descemos a toda velocidade montanha abaixo, muito de saco cheio de tanto subir. Numa escuridão quebrada apenas pelos nossos faróis, nos divertimos imprudentemente como poucas vezes fizemos tão ladeira abaixo, deixando para trás a maior de todas as morrebas que já vencemos, restando apenas a esticada final de doze quilômetros pelo asfalto chatinho da SC-370.

A adrenalina da viagem foi tanta que jantar não foi suficiente e mais tarde acabamos saindo para tomar uma cervejinha e rir de todas as presepadas dessa cicloviagem (pena apenas pela dupla sertaneja chata dos infernos que nos obrigou a voltar para casa mais cedo). Para conseguir o devido alvará de soltura, os casados se comprometeram a estarem em casa para o almoço de Páscoa - o que nos obrigou a madrugar e sair cedinho no domingo pela manhã. Marcelo e Éder partiram primeiro, ficando o destino da Fernanda nas mãos dos atrasildos que não conseguiram convencer o Tio Aldo a ficar com o bichinho. Fernanda veio dormindo a viagem toda dentro de uma confortável caixa de papelão e nem percebeu que a dupla Roberto/Rodrigo pegou o caminho errado e foram parar longe pra dedéu. O destino da Fernanda era um dilema e isso preocupava bastante. Roberto insistiu para que eu ficasse com a totó, mas as chances de ela sobreviver numa casa com um endiabrado rottweiler que possui o sugestivo nome de “O Incrível Hulk” (sim, - Hulk esmaga cachorrinha!) eram praticamente menores do que o assolo da floresta negra aonde a encontramos no dia anterior. Fernanda seguiu para Balneário Camboriú juntamente com o Roberto, mas a responsabilidade era dividida e precisávamos a todo custo encontrar um novo lar para o pequeno cão. E-mails e ligações para os deuses e o mundo, movimentando todos os contatos possíveis, até que numa felicidade muito grande – Roberto encontra uma boa alma disposta a adotar e dar todo o carinho possível a nossa pequena companheira de viagem.

E assim terminou a mais emocionante de nossas pequenas viagens de bicicleta por terrinhas catarinenses, com o desfecho tão bom quanto poderia ser, repletos de uma alegria verdadeira por poder fazer o bem. Rara foram as vezes que conseguimos nos divertir tanto pedalando, mas mais importante do que isso é essa indescritível sensação de satisfação pelo dever cumprido. Desde o resgate até a quase ingrata luta pela procura de um bom lar para o pequeno animal. Felizes e orgulhosos por todo o desenvolvimento da boa ação, os quatro farrapos pedalantes agradecem demais a querida Ju, que tão docilmente aceitou ser a nova “mamãe” da nossa estimada mascote.

“Plus je vois les hommes, plus j’aime mon chiens”

*Quanto mais conheço as pessoas, mais eu gosto do meu cachorro - tradução livre de um dos pensamentos mais conhecidos do filósofo, físico, matemático e escritor Blaise Pascal (França, 1623 – 1662).

Comentários
Seg, 25 de maio de 2015
Por: Elton Xamã
Hola, tchê!
Pedala, pedaladas!!!!
abraços pantaneiros
Xamã MS
Dom, 24 de maio de 2015
Por: Jedson Eleuterio
Parabéns por mais este belo pedal. Sorte a da Fernanda por ter encontrado ciclistas conscientes.
Sáb, 23 de maio de 2015
Por: Tuquinha
Vocês estão muito "profi", rsrsrs, abs!