Com os humanos ditos normais afugentados pela inesperada friaca, o feriado Santo ganhava trejeitos de um preguiçoso apocalipse de poucos zumbis e a madrugadora pedalada urbana fluiu como poucas vezes no relento das ruas quase vazias de Florianópolis e cercanias. Segui pedal afora com o nariz gelado e escorrendo em direção ao Sertão de Maruim ao encontro do comparsa Fernando que estava deveras empolgado com a possibilidade de desentocar. Pedalamos tagarelando até um pouco antes do Hard Sertanejo Café (onde Megadeth tocou no universo Fringe, tempos atrás) com o Flávio nos aguardando com alguma desconfiança, estranhando a nada habitual pontualidade.
No asfáltico trecho até São Pedro de Alcântara nos deparamos com alguma movimentação de bicicleteiros mais vindo do que indo e a primeira parada para valer foi para confabular com um simpático casal boa-praça de certa idade que oferecia de muito bom grado pãezinhos com salame e água mineral gelada retirados da invocada garupa de seu Velotrol modelo adulto. A manhã ensolarada ganhou forma juntamente com as eternas morrebas e nisso o frio se foi na medida que a fome se aproximou e ao chegarmos no Vale das Graças, nos aligeiramos em procurar comida.
Com o restaurante do hotel bastante cheio de esfomeados ciclistas glutões que devoraram praticamente tudo que viram, nos obrigamos a fazer um breve lanche nada robusto e de preço inflado nos arredores da bem cuidada pracinha central defronte a histórica igreja matriz de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, inaugurada no final de 1948 e hoje sede do Santuário Arquidiocesano de Nossa Senhora de Angelina. Empurramos respeitosamente as bicicletas estações acima até a singela gruta dedicada à Nossa Senhora de Lourdes e lá fizemos os devidos agradecimentos e a tradicional benzedura nas nossas tão queridas bicicletas. Com o relógio se adiantando mais do que deveria, aceleramos um pouco a prazenteira pedalada parando para respirar somente nos arredores da barragem do espirituoso sargento (e por vezes, camarada do Zorro!). Ladeamos a bela lagoa por um par de quilômetros e seguimos adiante em direção a Major Gercino com o Rio Garcia sempre a nossa esquerda. Antes da longa e amalucada descida, subimos consideravelmente aportando em terras Majorense já no final da tarde. A ideia era pernoitar por lá, naquele belo e pacato lugarejo, mas curiosamente o hotel não estaria funcionando naquele feriadão, pois a simpática e muito prestativa proprietária iria tirar alguns dias de folga com a família para descansar. Sugeriu deixar a chave da hospedaria em algum lugar escondido para que tivéssemos onde ficar e só não o fizemos por que precisaríamos de um reforçado café na manhã seguinte. Na padaria local estufamos o bandulho com uma merenda reforçada e ligamos os faroletes das bikes antes de adentrar na bela e gelada noite.
Somente quando percebermos a gigantesca lua cheia que por vezes aparecia entre muitas nuvens é que entendemos a ausência prudente do amigo Marcelo. Os 25 km de asfalto seguintes pareciam de uma estrada dedicada somente nossa e embora cansados, mantivemos um ritmo forte na esticada final. Tínhamos lembrança de ser uma cidade mais movimentada e estranhamos a exagerada calmaria de São João Batista quando chegamos já tarde da noite. Após devidamente instalados no simplório, porém bacaninha hotel, caminhamos ao léu pela vizinhança do centrinho buscando algo para comer. Com os caraminguás contados, titubeamos para entrar numa bodega de semblante chique tentando em algum momento persuadir o camarada Flávio - estreante em pedaladas pernoitadas -, a pagar a fartadela, mas como de costume, fomos devidamente ignorados. Esticamos a caminhada digestiva em busca de um botequim confeitado e, sem sucesso, acabamos voltando cedo para a hospedaria. Coberta cheirosa, ar-condicionado barulhento e programas horrorosos na TV nos obrigaram a dormir cedo e frustrados, choramingando pelo chocolate não encontrado. Antes das 8h da madrugada já havíamos tomado café e seguíamos rumo ao segundo destino da mini viagem: o Santuário da Madre Paulina. Questionando o bêbado que insiste em viver dentro de nós, ignoramos as chamativas vinícolas procurando seguir caminho sem distrações pelas tranquilas ruas de Nova Trento em direção ao famoso santuário. Inaugurado no início de 2006, o belo espaço dedicado a Santa Paulina é envolto por um parque ecológico com bosques e cachoeiras, chegando a receber mais de 75 mil cabeças visitantes mensalmente numa estrutura que conta com diversas lojas, restaurantes e até hotel com pompas de fantasmagórico.
Já voltando para casa, paramos rapidamente numa simpática lojinha pelo caminho nova-trentino apenas para reabastecer nosso estoque de doces, continuando nossa brincadeira ciclística seguindo pela SC-411 com os narizes sempre apontados para o litoral. Um pouco antes do centrinho da famosa Canelinha, cidade das olarias e referência catarinense no estudo do budismo, desembocamos numa bela e empoeirada estradinha de chão pela qual pedalamos por um bocado de tempo. Quando a fome bateu, paramos para lanchar um estranho pão com costelinha de sabor esquisito pouco antes apenas de o Flávio ser atropelado por um carro parado.
A ventania que já era chata ganhou forças e zumbia constantemente nos forçando a parar para alguns respiros. “Sempre Padawan e nunca Jedi”, penamos um bocado encarando o exaustivo vento contra da BR-101, já na etapa final da pequena e empolgante cicloviagem. Chegamos em casa ainda de dia com as pernas maltratadas, tubinho de Hipoglós na metade e bastante doces na socada bagagem. Entre um gole e outro de Pepsi, atualizamos a família sobre nossas façanhas e comemoramos a boa saúde enquanto fazíamos o inventário dos quitutes achocolatados que seriam degustados no belo domingo de páscoa em família que estava por vir.